Um Nosferatu no Rio #1

Plaz Mendes
6 min readNov 14, 2020

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Toda a palavra guarda uma cilada.

Torquato resistiu inicialmente ao movimento Tropicália, mas nunca desistiu de sua coragem e ferocidade para criticar o “careta” que se escondia dentro do ato revolucionário de ser poeta, contracultura, pois como bem sabemos “o que existe de interessante na Tropicália é não ser liberal e sim libertina”.[1]

Já dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade que nada ele amou na vida tanto quanto uma ave que vinha azul e doida e se espatifou nas asas de um avião. Já dizia o poeta Manuel Bandeira que num torpedo suicida darei de bom grado a vida. Já dizia o poeta Décio Pignatari que na geleia geral brasileira alguém tem que ser medula e osso.

Melhor maneira de compor esse artigo é o dividindo em três partes, como na frase acima que descreve o que Waly Salmão ou Sailormoon declamando sobre a vida de Torquato Neto. Suicídio, Vampiro e Escorpião.

É preciso não morrer por enquanto.

Torquato Neto

Suicídio

Em 1972 o gás preencheu os espaços e o poeta era apenas um corpo indolor. Conversas em outros tempos demonstravam que Torquato sabia como dar cabo de sua vida — gás — e também o que isso implicava. Tanto no documentário “Torquato Neto” como no “Tropicália” é possível perceber que havia uma certa programação do autor para o ato funesto. Premeditado? Lembremos que o suicídio se concretizou no dia 9 de Novembro de 1972, dia de seu nascimento para deixar claro. Outra questão é Torquato em vários momentos discutir o suicídio e além disso as formas mais práticas dele. O Gás. Indolor. E passivo.

Num show em Portugal no ano de 1972,conforme é mostrado no documentário “Tropicália”(2012) Caetano e Gil propuseram o fim do tropicalismo como movimento cultural influenciado por eles. O exílio tratou de expelir qualquer chance de agrupamento. Mas a flor que floresce da obra de Torquato é imortal como a rosa de Jericó[2] que é capaz de “sentir” o solo é assim esperar o melhor momento para florescer. Flor que chamamos de Marginália em fronte de melhor nome. Perpetuar o movimento da Tropicália talvez seja um exagero, contudo cabe lembrar alguns elementos da Tropicália:

Mesmo com curtíssima duração — os anos 1967 e 1968 — a história de ascensão e queda do movimento é conhecida por todos nós: festivais da canção, polêmicas com as esquerdas da época, prisões após o AI-5, exílios para Londres — e as principais características do movimento –, a carnavalização, a busca do excesso estético, o uso estratégico da cultura de massa e a inovação forma da música popular.(COELHO, 2002:131)

Mas como movimento, sobretudo estético a Tropicália teve pai, mãe e filho, ou seja, uma trindade que incorporou os principais aspectos do Tropicalismo. Gláuber Rocha com seu cinema novo e, sobretudo “Deus e o Diabo na Terra do Sol” alcança enorme projeção internacional e ainda hoje é lembrado como um dos filmes mais icônicos do chamado Movimento do Terceiro Mundo. Caetano e Gil se desdobravam como os patriarcas do movimento. Sem esquecer o teatro de José Celso Martinez e seu “Rei da Vala”. Isso tudo soa como obviedades, contudo essa história que se tornou um mito da Tropicália tem múltiplos personagens e um deles é um vampiro que tomava água de cocô e passeava pela orla carioca sabendo que independente do lugar e do espaço ele era um canibal antropofágico pronto para exterminar vidas e semear chances. Resista criatura. A poesia vem primeira. E falemos de previsões, mas talvez esse artigo seja um artigo celebração para Torquato para todos os marginalizados do movimento, ou seja, um artigo memória sobre a vida dele e sua importância dentro do movimento, ou seja, um artigo festa onde prosa e poesia se misturam para dessa forma estar no nível de Torquato. Resista criatura.

O que se chama de Tropicalismo pode ocultar um conjunto de opções nem sempre convergentes, sinônimo de um conjunto de atitudes e estéticas que nem sempre partiram das mesmas matrizes ou visaram os mesmos objetivos. (Napolitano & Villaça, 1998: 60) [3]

Torquato Neto foi medula, osso, sangue e suor dentro do movimento que veio a se chamar Tropicália. O próprio tinha na ponta da língua a definição desse movimento manifesto. Mas um apêndice. Não o chamemos de anjo torto, busquemos palavras mais concretas para esse piauiense. Deixemos o poeta clamar:

Tropicalismo para principiantes: A procura de um movimento pop autenticamente brasileiro. Um grupo de intelectuais no Rio resolveu lançar o Tropicalismo. Assumir tudo que a vida dos trópicos pode dar sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar de cafonice ou mal gosto, apenas vivendo a tropicalidade num universo em que ela encerra ainda desconhecido. Um ídolo: Vanderlei Cardoso. Uma cantora: Marlene. Um poeta: J G de Araújo Jorge. Um programa de TV: Um instante Maestro. Uma canção: Coração Materno. Um gênio: Chacrinha.[4]

Antes do suicida existia o jornalista que escrevia colunas para jornais e revistas. No início é possível ver um Torquato que defende a luta contra a americanização da música, embalados pelos movimentos contra a guitarra elétrica e construções nacionalistas e emepebedistas. Numa de suas colunas para o jornal em 1967 escreve:

A Casa Grande anunciando ter contratado, para representações semanais, um conjunto norte-americano de ie-ie-ie. Não precisava, mas enfim deve ser melhorzinho que esses todos que andam por ai, enchendo a paciência de quem acha música não é apenas guitarras elétricas barulhentas, harmonias primárias e melodias chinfrins. Mas mesmo assim Sérgio, não precisava. (NETO, 1967)[5]

Torquato defendia suas ideias com ferocidade nas colunas, mas também foi capaz de mudar de posição, passando a defender seus antigos detratores e a atacar os jovens universitários, a classe média e parcelas da esquerda que notavam esse movimento cultural brasileiro como uma traição ao espírito popular da música. Da MPB ao samba, as críticas explodiam. Fato relevante são os Festivais de Música que ocorrem em 67 e 68, onde em 1967 o público e a crítica reconheceram o valor das músicas de Gil, Caetano e Tom zé, para no ano seguinte em 68 apresentar a velha hostilidade. Mesmo ano do AI-5.[6]

E está iniciada a guerra. Somente no próximo dia 23 conheceremos as vencedoras. Vamos ver um bocado de coisas, inclusive como o público reagirá à canção de Caetano Veloso, que ele defenderá, acompanhado por guitarras elétricas. Gilberto Gil também vai usar guitarra (..) “Os Dragões da Independência do Samba” (também chamados de os “percussores do passado”) são contra. Mas isso é uma outra história.(NETO, 1967)[7]

A Tropicália como movimento abrangeu inúmeras artes, desde a música até as artes plásticas, contudo o senso comum continua a propagar como um papagaio que Tropicália é Caetano e Gil. Que Tropicália é Gláuber Rocha. Que Tropicália é José Celso Martinez. Que seja feita sua vontade. Santíssima Trindade a repercutir pelas ondas do fone e da internet. Tudo muito reto e correto. Lembremo-nos do vampiro, da sombra que perseguia os poetas. Recordemos o quanto antes da loucura e do fim. Dessa forma a arte, a sociedade, a caretice regurgita suas entranhas. O cuco maluco canta um samba.

Isso tudo demonstra que o movimento Tropicália sofreu tensões e bifurcações durante sua estadia histórica. Não foi um movimento linear, mas uma múltipla fratura, consensos e dissensos entre grupos, movimento, povo e pessoas. Não é de surpreender que o Torquato Neto tenha em seu corpo, seu sangue e sua medula, incorporado essas inquietações.

Sem sangue não se faz história

Plaz Mendes

Referências:

[1] A rosa de Jericó possui uma característica incrível: a capacidade de sobreviver em ambientes altamente desertos. In: https://diariodebiologia.com/2013/08/flor-da-ressurreicao-a-planta-que-retorna-do-mundo-dos-mortos/

[2] Citado por COELHO, 2002: 144

[3] Citado no documentário: Torquato Neto. Todas as Horas do Fim.

[4] In COELHO, 2002: 138. A Casa Grande era um teatro e o seu diretor artístico na época era Sérgio Cabral.

[5] AI-5: Ato Institucional Número 5 foi o mais duto dos atos, emitido pelo presidente Artur Costa da Silva em dezembro de 1968. O ato resultou na perda de mandatos de parlamentares contrários aos militares, intervenções nos municípios e estados e a suspensão de quaisquer garantias constitucionais. (CODATO, 2004)

[6] Citado por COELHO, 2002: 143

[1] Extraído do documentário “Torquato Neto Todas as horas do fim”.

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Plaz Mendes

“O corpo não é uma máquina como nos diz a ciência. Nem uma culpa como nos fez crer a religião. O corpo é uma festa.” Eduardo Galeano. cmendesthiago@gmail.com